História de Um Recruta

Sumário A Decisão Errada
Incorporação
Internato
O PLANTÃO
A Mensagem nø Grupø
o Campo

A DECISÃO ERRADA

Todo dia é um dia de pensar naquelas decisões que podem interferir completamente no seu futuro. Compreendo sobre isso completamente. Uma escolha errada e tudo ao seu redor pode desmoronar em cima de você, com consequências. Não importa o que eu faça para tentar consertar algo que não tem como voltar atrás. É como pegar um caminho onde um terremoto acontece, e abre o chão e me puxa para dentro. Um abismo sem fim, perdido na escuridão das escolhas obrigatórias.

O senhor quer servir o Exército Brasileiro?, perguntou o militar que estava me entrevistando.
Sim, quero servir. Sou um voluntário, disse, ao mesmo tempo o entrevistador estava anotando em uma folha cheia de perguntas. É uma armadilha, eu devia saber disso. Essa é a maneira perfeita de cair em uma armadilha. Uma vez li em algum lugar, devia ser de um filme ou um documentário: Um rato preso em uma armadilha roeu a própria perna para poder escapar. Essa frase era de um filme com a atriz Rebecca Ferguson. Não sou um rato, mas existe a possibilidade de ter uma armadilha.

O grande voluntarismo obrigatório que nós jovens temos que, infelizmente, fazer por nosso país. Em uma das inspeções, vergonhosamente, pedem a você que fique pelado, completamente pelado, para que o médico possa olhar o seu corpo dos pés, pênis e até a sua cabeça, à procura de alguma doença. O médico pede que assopre a palma da mão sem deixar sair o ar, procurando por alguma hérnia. Não tenho nenhuma doença, somente suspeito que tenho bipolaridade, mas não disse sobre essa suspeita, não tenho um diagnóstico.

Quando estivermos incorporados no Exército Brasileiro, é provável alguém dizer... Parabéns! Agora fique pronto para as mil palestras, o que são instruções militares, sobre as regras que proíbem você de fazer isso e aquilo. Talvez tentem impor medo em nós para que os sargentos sejam como Deuses Respeitáveis. Devem fazer isso no internato. Eles vão transformar cada um de nós, soldados recrutas em cobaias de sargentos e subtenente, até que, um de nós decida desistir sem dar motivos aparentes, apenas desistir. Seria como fazer todos pensarem que foi um acidente surreal. Ele não deu sinal de desistência, diriam.

O terceiro sargento Bergmann é um pai para nós, é o que ele mesmo diz, mesmo não gostando. Eu sou como um pai para os senhores, ele dizia. Talvez ele não saiba qual é a definição de "pai" Ele não comeu a minha mãe e me colocou no mundo, e também não me criou quando crescia. Ele não é o meu pai. Não sei como um pai seria para mim, mas não seria o Bergmann, jamais. Pensar nisso me dá repulsa.
Os recrutas são todos jovens adultos com a mesma idade. A maldita geração Z, a geração que vivem online conectados à internet, a geração problemática, é um fato. Não temos culpa se a ascensão dos smartphones nasceu em nossa bendita geração. Deveriam culpar os pioneiros de toda a tecnologia que atualmente temos, por estragar uma geração, com todas as palavras.

Eram apenas os recrutas que moram em Santa Maria presentes na Base Administrativa de Santa Maria. São quarenta vagas para quarenta recrutas. Por enquanto eram quinze, os de Santa Maria. Eu não sou dessa cidade, estou morando aqui temporariamente. Quando tudo acabar, de maneira definitiva, caso de errado em servir, vou partir para a minha cidade natal, Ijuí. Mais tarde viriam recrutas de outras cidades.
Essa seria a semana zero. A semana zero, o início de uma jornada. Uma jornada que estava começando. Vou conhecer gente nova. E todos vão saber o meu nome, ou sobrenome, e o número de recruta. Quero ser lembrado por centenas de anos. Quero estar em arquivos históricos. A história tem que registrar o sobrenome e número. 609 Carvalho. Eu quero ser uma lenda histórica, lembrado para sempre. Quero arquivar tudo o que for dito em minha história. Foda-se o que pensariam a respeito, diria. Internet Archive é o meu amigo. Não pode apagar-me, serei preservado até o fim dos tempos.

CAPÍTULO UM - INCORPORAÇÃO

Augusto Bergmann era um dos sargentos instrutor. Direita e esquerda volver, frente para retaguarda, marcar passo e marchar. Tudo foi ensinado por ele. Eu detestava esse sargento, pelo fato dele simplesmente existir e pelas suas ordens absurdas. Tinha um ar de esforço em querer ensinar as posições de sentido e descansar.
Somos apenas soldados recrutas, voluntários, de pressão psicológica e da abusividade de ensinamentos militares. Eles nos colocam números e nos chamam pelo sobrenome. Assim me nomearam de 609 Carvalho. Eu estava de fato incorporado em uma Instituição, a Base Administrativa da Guarnição de Santa Maria. O nosso respectivo comandante Soares havia se apresentado para o novo pelotão de soldados recrutas do efetivo variável. O comandante Everton Conceição Soares tinha 52 anos de idade, cabelo grisalho. Era ele o homem responsável pela Organização Militar onde eu estava servindo. Era ele o homem, de poder suficiente, para decidir o caminho de qualquer um de nós. Quatro olhos poderosos, ele.
A nossa formatura de incorporação foi emocionante. Foi como um "Bem Vindos a um ano de serviço forçado e de pressão psicológica. Agora, fiquem um mês sem poder ver as suas famílias porque estarão em internato" Teve cachorros-quente e suco de laranja como uma bela recepção aos familiares que estão ali orgulhosos vendo seus filhos, amigos e netos dando um passo novo em suas vidas. Era uma troca justa em oferecer cachorro-quente e suco em troca de soldados. Os meus avós estavam presentes, me aproximei deles.
- Oi, estão perdidos? - falei, me revelando aos meus avós.
- É, nós estávamos procurando por você - ele falou olhando com um olhar de orgulho e preocupação.
- Você estava muito imóvel lá na formatura enquanto a maioria dos outros garotos estavam se movendo procurando com os olhos os familiares e amigos presentes – o avô disse.
- O sargento Bergmann ordenou que olhássemos apenas para o horizonte e, não se movesse - expliquei.
Diante disso, a ideia de ficar um mês sem vê-los me deixou com um medo profundo em deixá-los. Respirei fundo.
- Vamos tirar uma foto ? – ele disse, como se estivesse ali somente para tirar uma foto com o seu único neto, fardado.
- Sim, vamos – falei.
Tirei uma fotografia com os avós usando o celular do avô Emílio porque a avó Rosalene não gostava de pessoas mexendo no celular dela. Ela é uma avó emprestada. Ela é italiana ou costumava ser.
- Por que você não vai até a mesa e pega um lanche para você? Eu aposto que mais tarde vai sentir fome. Não é mesmo? – ele falou.
- Boa ideia, vou lá pegar um cachorro-quente na mesa. – Eu estava realmente faminto, pequei dois copinhos de suco e dois cachorro-quente. Um para o meu avô.
- Vocês gostariam de conhecer o alojamento de cabo e soldados?
- Sim senhor, soldado Carvalho. Seria uma ótima ideia – o avô Emilio falou.
Levei eles até o alojamento. Eu senti um leve arrepio em pensar que isso tudo estava parecendo mais um episódio de Black Mirror. Não parecia certo eles estarem ali junto comigo. Era uma sensação estranha. O avô Emilio estava feliz e orgulhoso comigo. Eu estava feliz também.
Mostrei a cama beliche de duas camas para eles. Tinha um manto verde.
- Eu durmo aqui em cima – falei, mostrando o beliche que ficava em frente de um ar condicionado.
- Você sente frio dormindo ai? – A Rosalene perguntou.
- Sim, mas estou acostumado.
Ela olhou de relance para o beliche. Meus avós eram altos, mesma altura, mas eu não sou alto igual a eles.
- O alojamento é bem organizado – disse o Emilio.
- Sim, eles sempre dão ordens para cada um arrumar as suas camas em um padrão. Assim todas as camas ficam padronizadas.
- Onde ficam os armários de vocês? – perguntou Rosalene.
Conduzi eles até o corredor onde ficavam os armários dos soldados. Os armários eram verde escuro. Os armários são trancados individualmente com cadeados. Às vezes, esquecemos de remover a chave de dentro do armário e acabamos trancando-o com a chave dentro, acontece frequentemente, devido ao estresse e pela pressa do dia. Quando isso acontecia, eles pegavam e cortavam o cadeado fora e substituindo por um novo. Isso acontecia frequentemente e era um problema real
- Esse aqui é o meu armário numerado com o meu número de recruta.
- Legal. Onde fica o banheiro de vocês? - perguntou Rosalene com curiosidade além do normal.
- O nosso banheiro fica no fim do corredor. Vocês querem ver?
- Não. Acho que por hoje estamos ciente sobre onde o senhorzinho vai estar nos próximos dias. É um lugar bonito e organizado – disse o Emilio.
- Sim, eu concordo.
- Vamos te deixar aí então. Pode levar nós até os portões, não queremos caminhar perdidamente pelo quartel – o avô falou, como se estivesse segurando as lágrimas.
Eu mostrei o caminho até os portões. Nós nos despedimos e o avô Emilio disse que era para eu mandar mensagens ou telefonar se eu precisar de qualquer coisa. É para manter contato e atualizar sobre novidades novas. Fiquei observando eles irem embora, até não conseguir mais vê-los. Segurei as lágrimas. Talvez uma tenha escapado. Não sei. Eles me deixaram no temido desconhecido lugar que eu não estava nenhum pouco familiarizado. É como se os pais abandonam um filho em um orfanato porque não têm condições de criá-lo. Não estou em um orfanato, estou no internato, oficialmente em internato.

CAPÍTULO DOIS - INTERNATO

Estamos em internato. Estamos proibidos de ver o mundo exterior e o que restou para nós foi somente este lugar. Somos cobaias de experimentos militares. Somos reféns da mesma rotina de ontem, de hoje e a de amanhã, talvez isso seja um ciclo repetitivo. Todos os dias são iguais.
Nós acordamos cedo e nos preparamos para o café da manhã. Às 06:00 horas da manhã o toque de alvorada é acionado. Ninguém pode continuar dormindo, todos temos que levantar. Vestimos a farda verde oliva guardada em nossos armários. O meu canga era o 610 Da Rosa. Ele era um garoto moreno. Ele era um soldado recruta que alegou ter problemas de coração, mas o Exército Brasileiro ignorou totalmente o seu problema de coração. Ele foi voluntário, esse é o motivo dele estar servindo ao meu lado. Ele era simpático, pelo menos isso.
O nosso Treinamento Físico Militar (TFM) estava sendo conduzido pelo terceiro sargento Bergmann. Ele era um alemão de bigode por fazer, mas ele era musculoso e forte. O "Bergamota" sabia correr. Normalmente a corrida matinal são 3 Km, sem intervalos, depois da corrida temos que fazer barras. O meu máximo foram sete barras de braço. Era o meu recorde inquebrável. Quando o TFM acabou, de surpresa, eles deram 3 minutos para que os quarenta e um de nós tomássemos um banho no estilo "Flash" rápido demais. Nem dava tempo de soltar um peido.
Eu ficava na retaguarda. A retaguarda era o lugar dos baixinhos. O soldado 611 Daniel e o soldado 614 Teixeira, comigo, fechamos a retaguarda quando estamos em forma. Eu sentia o desejo de ser alto e não fazer parte da retaguarda. Às vezes desejava ser alguns centímetros mais alto, mas desejar não é o mesmo que poder. Essa minha altura é uma maldição. A maldição de não crescer mais.
Além de minha angústia por ser baixinho, o fato de ter o Daniel e o Teixeira na retaguarda aliviava em saber que não era o único que não era alto o suficiente para não ser da retaguarda. O que tenho certeza de estar no mesmo barco. A angústia aumentou.
- Todos em forma às 11 horas e 30 minutos para avançar para o rancho – disse o sargento Forgerini avisando.
Faltavam 30 minutos para 11 horas e 30 minutos. O sargento Forgerini espalhava medo com um simples olhar. Ele era melhor do que o sargento Bergmann, pois ele sabia como ser um instrutor. Ele demonstrava o sentimentalismo humano, diferente do Bergmann.
Enquanto esperava a hora do almoço, eu dormia embaixo de uma das camas, a maioria de nós ficava descansando no chão do alojamento, porque o chão era gelado e bom. A maioria de nós descansava nesses milagrosos e puros minutos de pura alegria. Eram bons preciosos minutos. Entre os quarenta e um de nós, um era cabo. O cabo Lopes. Ele era um gordinho moreno que estava aprendendo a ser cabo. Ele estava no mesmo barco. O mesmo barco navegou no meio do Triângulo das Bermudas, onde aviões e embarcações simplesmente desaparecem sem deixar vestígios. Eu não sabia disso, mas acreditava. Acreditava que a qualquer momento eu poderia desaparecer. Um momento estou aqui, e de repente, em um piscar de olhos, não estou mais, desaparecer sem deixar rastros.
Durante esse intervalo de tempo, conseguimos respirar, suar, esconder, brincar e cantar. O Daniel gosta de cantar. Ele sabe cantar músicas em inglês. Cantar é um jeito de escapar dessa realidade. A realidade ao nosso redor é pesada. É assustador. O tempo está passando devagar como uma tartaruga caminhando para casa.
- Todos lá fora em forma para ir para o rancho – a voz do sargento Forgerini soou no alojamento.
Obedecer. Ter disciplina e um bom comportamento, mesmo eu discordando com toda essa merda. Eu estou faminto. Eu estou com raiva e cansado. Talvez eu me finjir de louco e quebrar as regras. Nada aqui é meu, tudo é transitório. Alguma hora ou outra não vou mais estar aqui quando.
Pensamentos como virar um desertor e fugir nunca passaram pelos meus pensamentos. Eu particularmente gostava desse início do internato. Era um sentimento de nostalgia ou parecia ser. Teve arroz, feijão e carne, e um doce emplastificado que era goiaba como almoço. Alguns de nós pegávamos duas goiabas sem que percebam. Quanto ao último dos últimos, que estava em forma, dava o seu grito de guerra: INFANTARIA!, antes mesmo de avançar para o rancho. O último dos últimos geralmente era o soldado 614 Teixeira. Eu pude ouvir alguns recrutas comentarem e caçoaram da voz do Teixeira.
"Ele tem uma voz de gay", é o que diziam quando o Teixeira bradava infantaria. Comentários de moleque malcriado. A maioria deles são uns babacas.
Pela tarde, teve aqueles tipo de palestra onde ensinam o que é e o que não é errado. E como uma aula em uma escola militar, que dava muito sono, um sono além do normal, aquelas aulas são entediante demais. A regra era clara, quem dormia ou bocejava: tinha que ficar obrigatoriamente de pé, ou pelo contrário, lhe davam uma pontuação negativa que chamavam de FO - (FO negativo). O lado bom disso de ser baixinho é que se eu dormisse, ninguém que estivesse olhando para a plateia perceberia. Mas isso, se estiver sentado na última fileira de cadeiras. As cadeiras eram duras e desconfortáveis. Eram intermináveis horas de ensinamentos de assuntos que anotava em meu caderno, mas nunca revisava. Talvez se eu revisasse teria me saído melhor como um soldado inexperiente e recruta do efetivo variável. A preguiça tomava conta de mim, essas aulas são inúteis, pensava. Era uma instrução militar sobre princípios e valores.

Lembro-me da vez que o sargento Bergmann me deu a ordem para ir ao banheiro e fazer a barba em dois minutos, aqueles dois minutos eram pouco tempo. Eu corri em uma velocidade veloz para pegar o barbeador, a espuma de barbear e a gillette no armário, e corri ao banheiro para fazer a barba em frente ao espelho. Eu estava fazendo a barba tão depressa que acabei cortando todo o rosto. Quando entrei em forma, o sargento percebeu e gritou bem alto: "Não! O soldado abriu uma buceta na cara!", parecia engraçado. Eu podia sentir o sangue escorrendo em meu rosto.

CAPÍTULO TRÊS - O PLANTÃO

Tinha sido escalado como plantão. O meu primeiro serviço, estava um pouco ansioso. A senha é "escuro" e a contra-senha é "sombra", o número por adição é "três" disseram em uma rodinha com os que estavam de serviço de plantão. Nós estamos fazendo uma simulação sobre o que fazer quando o rondante passar por nós de madrugada.
Quando o rondante passar, grite:
- Alto lá, identifique-se.
Então o rondante ficaria imóvel e gritaria a palavra rondante. O plantão, então em resposta, diria:
- Aproxime-se para melhor identificação.
O rondante aproximava-se alguns passos, até o soldado de plantão da hora dizer a palavra "alto" e "avance a senha" O rondante diz a senha e o plantão diz a contra-senha e um número de soma para somar até o três, se dito um, o rondante responde dois. Após isso, o plantão diz:
- Rondante identificado.
Apresentando-se para o rondante com continência e com o número de recruta e o nome de guerra... soldado 609 Carvalho, plantão da hora, apresento serviço sem alteração, assim eu diria. Parecia ser simples. Eles ensinaram corretamente. O soldado Dallago era bom como instrutor, mas ele era bom demais para ser apenas um soldado antigo e não um cabo ou um sargento. Um soldado, apenas.
O sargento Miguel sorteou os quartos de hora. Eu e o meu canga Da Rosa e o Daniel pegamos o segundo quarto de hora. Nós assumiria da meia-noite até às duas da madrugada.
Às 22:00 o primeiro quarto de hora assumiu. Esse era formado pelo Drescher, Chimainski e Schumacher. Eles estavam empolgados. O Drescher fez o pernoite, ele anotou o nome de todos que estavam no alojamento de cabo e soldado. Sem contar os de serviço. Após ter anotado todos, ele desligou a luz do alojamento. Nós deixamos nossas regatas de TFM na beirada da cama para que identificassem quem estava de serviço na hora de trocar os plantões, assim não haveria confusão em acordar aqueles que não estavam de serviço. Havia alguns soldados que estavam roncando de tão cansados, era o Maidana. O 603 Maidana, soldado abatido e inconsciente. O trouxa continuava roncando alto. Tentei dormir, fechei os olhos e imaginei estar em um barco navegando no Oceano, no meio da noite e com a aurora boreal no céu, e iluminando as águas do mar. Adormeci.
Sou acordado por Chimainski, que estava de plantão no alojamento.
Vai para o banheiro se tiver que fazer suas necessidades, disse ele sussurrando.
Faltavam dez minutos para meia-noite. Eu fui ao banheiro e passei água no rosto. O banheiro era muito peculiar e tinha três repartições quando você entrava no banheiro, tinha os espelhos e as pias com as torneiras, para a esquerda havia os chuveiros, um ao lado do outro, e para a direita são os vasos sanitários, pelo menos são fechados e eles têm uma porta para cada sanitário.
Eu abri o meu armário e peguei um doce de amendoim que havia pegado no café da manhã, não podia comer enquanto eu estivesse de plantão da hora, comi ali mesmo. Também tinha três maçãs dentro do armário e cinco laranjas. Eu tenho laranjas!, disse. O tempo estava se esgotando, quase meia-noite. Sai para fora do alojamento onde o cabo de dia estava, o soldado Dallago, ele fez as trocas. Eu fiquei de plantão da hora no alojamento.
Aconselho que de vez em quando, verifique as câmeras e os soldados do alojamento para ver se estão todos bem, ou se alguém estiver passando mal, me chame imediatamente, disse ele. E chame o próximo da hora 10 minutos antes, avisou.

Passou-se uma hora e vinte minutos. O rondante estava passando, eu o vi sendo abordado pelo 610 Da Rosa. E depois, pelo 611 Daniel. Era a minha vez de abordá-lo. Escondi o meu corpo na penumbra em uma parede, somente o meu rosto estava à visão do rondante.
- Alto lá, identifique-se, – eu disse o abordando e em resposta, ele disse:
- Rondante.
Pedi para ele avançar a senha.
- Escuro – respondeu o rondante.
- Sombra, dois – indaguei a contra-senha e o número por adição.
- Um – respondeu. Ele era de fato o rondante. O rondante era o sargento Miguel, da seção de informática. Bati continência e apresentei o serviço sem alteração. Ele me olhou dos pés a cabeça e perguntou:
- O senhor quer engajar?
Eu hesito em responder. Por que essa pergunta é muito pessoal?, penso. Respondo que sim. O que poderia acontecer se eu tivesse dito que não?, ser dedurado ou ser imaginado como um soldado fraco. Talvez seja apenas curiosidade. Não tem como saber de verdade. Ele anotou o meu número em seu celular como os rondantes geralmente fazem, deve ter um grupo do Whatsapp onde colocam quem está de plantão da hora, e onde colocam as informações se caso tiver alguma alteração. Hoje não tem alteração.
Bom serviço, fique atento, ele diz indo em direção ao P2.
Estou com bastante sono. Eu entro dentro do alojamento e olho para as câmeras, vejo o rondante desaparecendo nas gravações de uma das câmeras. Tenho que verificar se todos do alojamento estão bem. Abro a porta de onde as camas do alojamento dos soldados EV estão. Eu entro furtivamente e sem fazer barulho, não posso acordar ninguém nessa hora da madrugada, ficariam irritados. Estava tudo em ordem como tem que ser.

Ando para lá e pra cá, ansioso, com fome e com vontade de mijar. Faltam poucos minutos para chamar o terceiro quarto de hora. Eu teria que acordá-los, o 629 Magalhães, 0 628 Anderson e o 627 Lemos. Havia morcegos voando pelo teto e estavam fazendo barulhos. Não são morcegos que costumam atacar. Morcegos me lembram do super-heroi: Batman, o homem-morcego. O Batman é um personagem fictício que luta contra o Coringa. O Coringa despreza a sociedade, ele é o vilão que sofreu muitos traumas antes de tornar-se de fato um vilão. Lembro-me de sua frase em um filme no qual ele dizia: "Por que tão sério?"
Acordo o terceiro quarto de hora faltando dez minutos para às duas. Digo para eles fazerem as necessidades no banheiro antes de assumirem o plantão da hora. O Dallago estava pronto para fazer as trocas.

As trocas foram feitas. Estava livre para descansar e dormir. Mas fui ao banheiro mijar. Depois direcionei-me do meu armário, e queria matar a fome comendo maçãs de madrugada. Estava faminto de fome. Comi uma maçã e descasquei uma laranja com o meu canivete, joguei as cascas no lixo em frente às câmeras de segurança do alojamento. Sentei-me em uma cadeira com uma mesa e assisti às câmeras enquanto comia uma laranja.

Eu poderia comer mais laranjas, mas estou com sono. Quero dormir. Vou em direção ao beliche, onde subo as escadas verdes. Meu canga estava adormecido embaixo da cama de baixo. Me deitei e não vi mais nada, além dos ruídos do ar-condicionado ligado no mais frio possível. Cedo ou mais tarde vou pegar uma gripe com essa merda ligada. Adormeci de cansaço.

Nós somos acordados com o Chimainski que acendeu as luzes do alojamento e gritou:

- Alvorada, alvorada, vamos acordar.

Eu ouço o toque de alvorada em uma trombeta, deve ser o soldado Almeida, um soldado antigo.

Trabalhar muito é trabalho feliz, é o que disseram em uma das instruções militares. Não existe felicidade nesse ambiente. Eles citavam o que Duque de Caxias uma vez disse: "A farda não é uma veste que se despe com facilidade e até com indiferença, mas outra pele, que adere à própria alma, irreversível para sempre". Eles citavam-o. Duque de Caxias está morto e enterrado, deve estar revirando-se em seu caixão. Tenho que acreditar nisso. Preciso acreditar.

O café da manhã. Todos estão em forma para avançar para o rancho. Quem está de serviço pode ir sozinho sem ser mandado a ficar em forma. Estou ansioso para passar o serviço e retirar o cinto suspensório que incomoda meus ombros e meu pescoço. Teve café, leite e açúcar, separados ou divididos em partes. Também teve pães de queijo e pães francês. E teve maçãs de frutas. Vou comer tudo o que tenho direito, penso. São três refeições diárias: café, almoço e jantar. Abençoado rancho.

A MENSAGEM NØ GRUPØ

Amanhã vou estar de serviço de guarda, de sentinela armado. Amanhã é dia oito de maio. Vou ter que aproveitar o hoje. O Oliveira me convidou para ir ao bar Container. Preciso me divertir sem esquentar a cabeça, tenho que me divertir e aproveitar a noite, e encher a cara. Quando saio junto com o 638 Oliveira, geralmente, nós bebemos alguma cerveja, antártica ou uma Brahma gelada. Não bebemos outro tipo de bebida a não ser cerveja. Eu gosto do sabor de cerveja. A cerveja quando consumida em ambientes sociais pode ajudar mas interações sociais e ajudar no alívio do estresse, isso eu devo ter lido em um artigo, ou em um jornal. Nós bebíamos como de costume. O costume é beber.

Em finais de semana aquele bar estava cheio. O bar estaria como um formigueiro de formigas, ou como uma caixopa de abelhas. Uma colônia de humanos. A multidão são universitários, militares e civis dentro do bar Container, alguns grupos de gente adulta na mesa de sinuca da entrada e outro grupo na outra mesa de sinuca perto do caixa. Onde vendem as cervejas por doze reais. Duas antárticas somam vinte e quatro. Eu e o Oliveira estamos presos pela multidão perto do caixa. Em direção ao meio-dia estão um grupo de mulheres que estão nos ignorando com força. Talvez sejam lésbicas, mas não tem como saber. O bar tem duas TVs penduradas no alto, ou penduradas perto do teto, nas TVs passa uma programação de um jogo de futebol. Era o River Plate jogando contra o Internacional.

O jogo acabou com o Internacional ganhando de 2 ×1.

A meia-noite chegou. Nove minutos passaram e uma mensagem no grupo do WhatsApp fez meu celular vibrar. Dei uma olhada, a mensagem dizia: "TE-I-XE-I-RA. Me desculpe. Me desculpe. Me desculpe. Me desculpe".

Eu não sabia o que aquela mensagem significava. O 614 Teixeira deve ter enviado uma mensagem ao grupo errado, o grupo em que os sargentos estão. Deve ter se enganado de grupo. Por que ele estava se desculpando?
Eu acho que você mandou mensagem no grupo errado, escrevi, mas não enviei. Ignorei o que tinha acabado de ler. Quem leu também ignorou.
Deve ter sido um engano aquela mensagem. Tem que ser.
No calar da noite fomos para o quartel, e eu deitei em minha cama e apaguei de tanto sono que estava. O dia e noite haviam esgotado as minhas energias completamente.

O toque de alvorada está tocando. Levanto da cama e me preparo para o cafe: Estou de ressaca do dia anterior. O cabo de dia é o soldado Streb. Esse Streb tem a cara de um leitão. E ele é um carente que tem cara de um leitão. Não posso comparar qual deles é mais carente, o soldado Isaías ou o soldado Streb?, os dois empatam no nível de carência. Duas putinhas que devem pensar que mandam até nas cuecas dos recrutas. Eles não têm poder algum sobre nós. Apenas faça a faxina corretamente e vai se sair bem.
Para o Exército Brasileiro, fazer faxina é um método de disciplina, mesmo se a faxina durar das 18:00 até 22:00. Um pesadelo, mas caso você concentre a sua mente em outra coisa, pensar em sua hora de descanso, pode perceber o tempo passando mais rápido. Alguns reclamam e outros apenas aceitam em silêncio. Fazer faxina e limpar banheiros cheirando à bosta.

Eu estava em meu armário mexendo em meu celular. Eu vou assumir o serviço de Sentinela às 18:00. Estou engraxando os coturnos para ir para a parada diária. A Parada Diária é uma formatura destinada à revista pessoal para o serviço diário. Eu devo preparar o uniforme e apresentar-me na parada diária com o cabelo cortado e a barba feita. Limpei o coturno para participar da "paradinha".
Após a paradinha, os de serviço de guarda do quartel; tivemos que fazer cricri e faxina. Era chato fazer cricri, e tirar os matinhos do meio-fio. Lembro-me de pensar que o Exército era mais operacional do que realmente é, na verdade. Às 10:30 e ao nosso pelotão de serviço estava fazendo cricri em frente à cantina.
Ele se matou, disse o Preuss aos prantos. Ele se jogou de uma ponte!, dizia em um tom de tristeza.
Eu segui-o até o banheiro para saber o que tinha acontecido.
O Teixeira pulou de uma ponte – disse o Preuss para o Ebling – ele morreu.
Aquilo me foi dito, e foi como ser atingido em meio a um tiroteio. O combatente que costumava ser um dos últimos da retaguarda nunca mais seria visto sorrindo conosco, contando as suas piadas.

Eu não pude ir ao funeral do Teixeira porque estava de serviço. O velório dele seria pela tarde e todos da Base Administrativa da Guarnição de Santa Maria iriam, sem contar o pessoal de serviço. Azarados que não podem ir à uma última despedida de um amigo que morreu jovem demais.
Escrevi embaixo de uma das camas do alojamento dos sentinelas de serviço de guarda: "TE-I-XE-I-RA. Descanse em paz 08.05.2024", e uma cruz do lado. Não pude conter as lágrimas e chorei sem acreditar no que tinha acontecido. Ele era um bom soldado. Ele era como um irmão para todos nós. Eu não entendo o porquê dele ter feito isso. Essa foi a primeira vez que senti a dor do luto, a dor da perda de um amigo. Como seguir em frente e fingir que eu estou bem com isso?
Estamos cansados, ansiosos, depressivos e com raiva. Somos trinta e nove recrutas agora e um cabo especialista. Você pode sentir a tristeza pairando no ar. Consegue sentir essa dor, você? Quero que você respire e inspire, feche os olhos e durma, e finja que o Teixeira está vivo e respirando quando acordar deste maldito pesadelo. É um pesadelo?

Lembro-me do Teixeira preparando as ligas de borracha dentro da lavanderia. Ele estava concentrado demais com os kits para o campo. Eu observava-o enquanto fumava meus cigarros mentolados, sabor melância. Ele passava a maior parte do tempo naquela lavanderia, e sabe lá Deus, o que ele pensava, sozinho na lavanderia, devia ser o seu jeito de isolar-se de nós. Ele cortava com a tesoura as ligas de borracha para colocar em torno dos potes dos Kits, devia ser potes sanremo, mas não os originais, esses são fáceis de quebrar. Poucos de nós tinham comprado potes sanremo originais, que seriam bons para levar para o campo, pois são mais resistentes, e difíceis de quebrar. O Chimainski tinha comprado potes sanremo que eram originais, deve ter comprado de um sargento por um preço barato.

Talvez o Teixeira tivesse problemas fora do quartel, com a família. Talvez nós pudéssemos ter evitado o suicídio dele. A verdade é que nós estávamos ocupados demais para se importar em perguntar se estávamos realmente bem. Um de nós não estava bem. Ele não deu sinais de depressão ou de um suicida, e como poderíamos saber? Ele cruelmente agonizou no Hospital, até que os médicos anunciram a sua morte.
O nome dele era Carlos Henrique Teixeira da Silva. Quero lembrar dele como um irmão de guerra. A vida é injusta com as pessoas boas.
Quando o sargento Forgerini abriu o armário do Teixeira para pegar os pertences e devolver à família. Um dos itens dentro daquele armário estava em destaque: Uma Bíblia, o único livro que ele passava a noite lendo. A ficha não tinha caído ainda, até eu imaginar que nós nunca mais vamos ouvir a voz dele bradando o seu nome de guerra. É uma hamartia. Ele deve ter acreditado que não tinha outras alternativas ou que o sofrimento é insuportável. Uma falha em perceber a possibilidade de recuperação ou ajuda pode ser um erro trágico.
Menos um combatente e mais uma estrela no céu, diria.
Antes de meia hora para o meia-noite. Ele disse para a mãe dele que ele passaria em uma borracharia para pegar borracha de pneu para levar para arrumar seus kits para o campo. Se eu soubesse que ele faria isso, eu não deixaria ele ter ido sozinho, podia ter evitado, disse um dos que estavam de sentinela que morava em São Pedro do Sul e era próximo do Teixeira.
Ele era muito quieto na dele, disse.
Um dia eu havia comprado bolachas de mel e levado para o quartel. O Teixeira viu que eu estava com as bolachas de mel, e me pediu uma. Eu dei uma bolacha de mel e em troca ele me deu uma barra de cereal. É uma lembrança.
Teve um outro dia em que o Teixeira pediu meu relógio, mas não emprestei. Eu não emprestei porque recém tinha pegado meu relógio, que antes tinha emprestado para o Silvano. O Teixeira estava de serviço de plantão.
Me sinto culpado por não ter emprestado o maldito relógio de pulso. Posso ver flashbacks das lembranças dele passando em minha cabeça. Tudo de tão recente. Ele nunca mais vai colocar os pés nesse quartel. A única coisa que tenho fisicamente dele é um plástico de uma barra de cereal. Tenho sentimentos em um pedaço de plástico.

Estou no descanso. Todos os sentinelas do segundo quarto de hora estavam dormindo e roncando. A vontade de sair para fora do alojamento e acender um cigarro aumentava. Tenho que sair do alojamento da guarda. Preciso acender um marlboro.
Eu saio do alojamento furtivamente sem acordar ninguém, e acendo um dos meus cigarettes. Estava quase no horário de pernoite, que geralmente é às dezenove horas. Depois do pernoite vai ser a hora de ir para o rancho comer a ceia. A ceia é a última refeição preparada pelos rancheiros para os militares de serviço. O café da manhã, o almoço, o jantar e a ceia, são preparados por homens, cozinheiros, os chefes de cozinha, nada de mãos femininas para fazer essas refeições. Mas exceto pela sargento Marcela, que faz parte do rancho, geralmente ela se encontra em seu escritório, onde mantém todas as chaves das portas do rancho.
Pode notar-se claramente os homens babando por ela, e sabem que ela gosta de chamar a atenção deles. Ela mesma os provoca com cantadas, uma cadela no cio, é o que ela parece. A última vez que a vi, ela estava em uma das mesas de concreto, aquela que tem uma toalha de mesa, o que a diferencia das outras mesas do rancho, um simples detalhe, uma toalha verde. Ela estava conversando em uma rodinha com outros sargentos e um tenente, havia um soldado antigo também. Eles conversavam, tagarelavam e riam alto, despreocupados com quem estivessem os ouvindo, porque eles têm poder de algum tipo. Não ser um sentinela é o livramento deles. Tenho um pingo de inveja disso. A sargento Marcela é uma mulher morena, alta, cabelo preto atado para trás, o corpo malhado, ela aparenta ter vinte e oito anos. Não sei muito sobre ela. Não temos muita interação, mas sei que se tivéssemos mais interações, não mudaria nada. Ela continuaria sendo uma sargento, e eu um recruta.
O pernoite aconteceu. O tenente nos passou a senha, a contra-senha e o número por adição: Morcego, penumbra e sete. Anotei em minha mão com um canetão preto, para decorar e lembrar depois, com aquelas duas palavras e aquele número, sou capaz de abordar o rondante.
Estão todos bem para tirar o serviço? Ninguém está passando mal?, perguntou o tenente olhando para nós.
Analisando o meu estado mental atualmente, com tudo o que aconteceu, a morte do Teixeira, o funeral dele que não pude ir, o sentimento forte de melancolia e do luto, a grande tristeza. Caso eu diga que não estou bem, eles poderiam me substituir por um dos plantões, ou pelo meu canga, o 610 Da Rosa como chamam. O Da Rosa me odiaria por isso. Não quero ser mais odiado do que já sou. "Eu estou bem", é uma mentira que funciona perfeitamente contra os simplórios. Às vezes me sinto odiado.

O CAMPO

Amanhã vai ser o dia do campo, dia treze de maio. Estou preparando ao máximo a mochila para o campo. Estou preparando tudo o que preciso para o amanhã, quando ver o sol subir lentamente enquanto o planeta Terra continua girando sem parar, igual nós humanos. A raça dominante nesse sistema planetário, os inteligentes, porém ignorantes. De qualquer maneira eu durmo. Estou descansando a carcaça para enfrentar o que vem a seguir. O campo será nossa simulação de guerra.

Somos acordados às quatro horas da madrugada quando os sargentos Bergmann e Forgerini entraram no alojamento gritando:

- Começou, senhores! Começou, senhores! Preparem a carcaça, se preparem.

Um dos sargentos estava apitando com um apito para nos apressar.

Preguiçosamente levanto do beliche e corro para o meu armário. Tem luzes vermelhas para todo canto, as luzes de sinalizadores acesos, provavelmente os sargentos acenderam antes de nos acordar. Parecia um ambiente sombrio e totalmente diferente do normal, e era o que queriam que pensássemos. As luzes vermelhas dos sinalizadores iluminando no escuro causam uma sensação de alerta imediato, e sinalizam a necessidade de parar, observar e de agir com cautela. Eu pego meu barbeador e a espuma de barbear, sigo para o banheiro. O banheiro estava lotado de recrutas. Não tem espaço disponível nos espelhos. Tenho que improvisar e fazer a barba sem um espelho.

Quando me sinto pressionado e estressado, eu esqueço coisas. A gandola nova foi completamente esquecida pendurada em um dos beliches, pois deixei a gandola secando em frente ao ar condicionado.

A sensação de medo paira sobre mim enquanto coloco a calça camuflada de ralo e a gandola de ralo por cima da camiseta de ralo que antes era de um soldado do ano anterior, o desconhecido soldado laronka. Para completar, coloquei o gorro numerado com o número seiscentos e nove. Os coturnos de ralo estavam calçados em meus pés, mas a amarração de selva em um deles não estava feita.

Pareço estar pronto, então pego a mochila de cima do armário. O tempo está esgotando-se. O 615 Bernardi esta conferindo a mochila, enquanto a maioria está lá fora, todos prontos. Eu decido deixar o kit costura no armário, pois pensei ser muito desnecessário.

Estava com vontade de ir ao banheiro mijar, mas o meu pedido foi negado pelo sargento Bergamann. Não me restou tempo. Então corro desequilibrado para fora do alojamento, onde vou para o fim da fila, para a retaguarda e em forma. É a hora do apronto.

A mochila estava realmente pesada. Dentro da mochila tenho uma farda de muda, um par de coturno de muda, uma roupa de frio verde militar, além dos kits socorros, sobrevivência, carcaça, manutenção do fuzil, camuflagem, e um pote de alumínio que chamamos de marmitex e um caneco de alumínio para beber água que cautelei com o subtenente Pires. Também tem um litro de água, um poncho, um saco de dormir. Tudo perfeitamente impermeável em plásticos à prova d'água, itens resistentes que não molham. Não estava levando balaclava e as luvas de frio, pois pensei serem desnecessários. Não gosto da ideia de ter algo cobrindo o meu rosto e a sensação estranha de luvas em minhas mãos. Tenho velame suficiente dentro da mochila. Os velames que o avô Emilio comprou em uma loja militar Defender.

- Antigamente na minha época, ser um militar não era assim. Os soldados tem que pagar para servir agora – dizia Emilio reclamando dos preços dos itens militares da loja Defender.

Ele estava zangado porque eu havia gastado quatrocentos da grana do meu salário. Um preço alto que doeu os bolsos. Sou um soldado, mas um consumidor de equipamentos militares que se tornaram produtos comercializáveis.

O sargento Forgerini nos levou até ao lado do rancho marchando e cantando canções militares com o máximo de animação. Estamos esperando a 3ª DE cautelar os pau de fogo. A 3ª DE também fará o campo com nós da Base Administrativa da Guarnição de Santa Maria. Enquanto esperamos, estamos seguindo a ordem de caranguejar.

- Sabe o que é caranguejar, soldados? – perguntou o sargento Forgerini olhando com os olhos o mais arregalados possíveis para nós.

- Caranguejar é o ato e a técnica de aquecer o corpo. Caranguejar é dar pequenos pulos com cada perna de cada vez e manter a carcaça em movimento, sem sair do lugar – disse ele.

Sinto uma sensação de que está faltando alguém aqui na retaguarda, penso, o Teixeira devia estar no lugar onde o cabo Lopes está, um cabo substituto. O Lopes também é o canga substituto do soldado 613 Ebling no campo.

É mais difícil desistir agora, mais fácil encarar o desafio e continuar. Só desisto quando morrer. Quais são as chances de morrer no processo? Ser esfaqueado por alguém com um canivete? Não vou deixar ninguém irritado comigo.

É a nossa vez de cautelar os pau de fogo e a bandoleira. A bandoleira facilitaria para carregar nossas armas não funcionais no campo. Abençoada bandoleira.

Após todos os recrutas do nosso pelotão terem acabado de cautelar. Os sargentos Bergman e Forgerini e o sargento Azevedo, eles nos levaram em frente ao rancho, onde recebemos café da manhã. Estava usando pela primeira vez o caneco de alumínio para me servir um café com açúcar. Tem pão com mortadela e bananas de frutas, pego um de cada. Não estava realmente com fome, mas tive que comer com pressa. Guardei a banana em um dos bolsos da calça, comeria mais tarde quando a fome bater. Uma hora a fome bate, sempre bate, e o estômago começa a fazer barulhos pedindo migalhas de alimentos, até o ponto de você considerar mastigar folhas de uma árvore para enganar a fome, para não sucumbir. Não sei o que me aguarda no campo. O desconhecido está um passo à frente.

Eles levam a gente para a garagem do quartel. São quase cinco horas da manhã, nenhum sinal do sol subindo ainda. Todos os recrutas estão alinhados em fileiras, cada um está a um metro de distância um do outro. Está tocando uma música motivacional. Devem usar muito essa música em curso de formação de cabos. O tenente Duarte está falando no microfone. Não estou prestando atenção no que ele está dizendo, estou prestes a mijar em minha calça.

- Quero que os senhores tirem tudo o que tem dentro da mochila dos senhores e coloquem em na frente e organizado em cima da lona do apronto – disse o tenente Duarte.

Os sargentos estavam passando por cada um dos recrutas. Estavam fazendo uma espécie de revista para ver se algum de nós estava levando algo ilegal ou algo que não deveriamos levar para o campo. Devem estar procurando por drogas ou armas. Os sargentos são como cães farejadores.

O sargento Azevedo está revistando as coisas que vou levar para o campo. Ele pede para eu abrir as tampas dos kits. Eu as abri, e ele dá uma rápida verificada com a sua lanterna de luz esbranquiçada.

- Pode fechar os potes. Cadê a toalha que foi pedido? – perguntou ele.

‐ Eu esqueci, senhor. – Não quis dizer que a toalha não quis levar porque somaria mais peso.

- Arrego! Como vai se secar quando estiver molhado? – perguntou indignado.

- Não sei, senhor – eu disse.

- Posso ir ao banheiro, senhor? – não consegui resistir a perguntar. Se não perguntasse agora, quando perguntaria?

- Está precisando muito ir?

- Sim, senhor – respondi.

Havia um banheiro a dez metros de distância. Seria maldade ele recusar.

- Pode ir – disse o sargento Azevedo. Eu pedi para o cabo Lopes cuidar das minhas coisas enquanto vou ao banheiro me aliviar.

Ordenaram que colocássemos nossas mochilas em um caminhão militar VW Worker com a traseira aberta e fechada nos lados e acima. Esse caminhão transportava apenas nossas mochilas. Outros três caminhões, levam os recrutas da 3ª DE, são mais de setenta recrutas divididos em três VW Workers. Um outro caminhão transportava apenas os recrutas da B ADM GU SM e outro com recrutas dos dois pelotões.

Estou no caminhão com os recrutas dos dois pelotões. Não tem como saber para onde estão nos levando. O meu canga 610 Da Rosa está ao meu lado. A numeração do gorro dele estava descosturado. Ele não costurou direito.

- Alguém, tem o kit costura para me emprestar? – perguntou o Da Rosa para os recrutas dentro do caminhão.

Um deles tirou do bolso um potinho pequeno de kit costura e emprestou para o meu canga. Ele precisava só de uma agulha e de um rolo de linha, cor preto, ou verde. Preciso ajudá-lo a costurar, pois ele não tem muita experiência com costura. Eu aprendi a costurar assistindo tutoriais no YouTube. Não foi com avó ou bisavô. Lembro que no internato alguns de nós pagavam para costuras os bolsos da farda, que era o que pediam para ser costurados na farda, malditos bolsos descosturados.

Em minha primeira oportunidade de levar a farda para a casa dos meus avós, pedi para para que a minha avó Rosalene costurasse os bolsos da farda para me ajudar.

Costurar o gorro estava sendo uma tarefa complicada com o caminhão militar em movimento. O motorista deve ter tirado a carteira de motorista ontem.